Da série... Mais um conto que eu conto
Qualquer pessoa sabe que não
existe pior doença no mundo que uma mente insana. Isto mesmo, uma mente que não
funciona bem pode colocar tudo a perder, mas quando eu falo “tudo” não estou
sendo exagerada, estou sendo realista, o máximo que posso. Perder o controle
sobre a própria mente pode lhe custar mais que a paz, perder o equilíbrio mental
é como se trancar em um lugar, fechar todas as saídas e o encher de agua até
sentir lentamente o desespero daquilo que se causou, e não conseguir reverter, esta
pode ser uma das mil definições possíveis para aqueles que se perdem de si
mesmo. Talvez isto seja algo muito comum, mas pouco contado, e eu só sei de
tudo com riqueza de detalhes por que estive lá o tempo todo.
É difícil ser fiel a
personalidade de Ana Lucia, mas tentarei ser o mais próximo que conseguir. Ana,
sempre foi uma mulher muito agradável, aquele tipo de mulher que qualquer
pessoa falaria bem, mas não apenas por sua educação, ou doçura em sua voz, nem
mesmo por ter sido “criada” para ser uma boa esposa e mãe, o diferencial dessa
mulher é que ela se sentia bem em ser quem era. Sentia-se naturalmente bela em
seus poucos 1,60 de altura, cabelos curtos e pele bem cuidada pela genética, no
entanto o seu físico não era o que mais importava, mas ser considerada uma
mulher “prendada”, isto era algo que a deixava cheia de orgulho, ou pelo menos
pensava isso.
Enquanto estava a cuidar do seu
jardim, Ana Lucia ouviu o chamado de sua vizinha. Fátima não era muito mais
jovem que Ana Lucia, mas também não era de sua idade, era uma mulher que se
arrumava muito, dificilmente alguém a veria sem estar com o rosto coberto de
maquiagem e vestindo roupas vistosas e salto. Naquela tarde, Fátima estava
péssima, ela era o que podemos chamar de hipócrita ou fingida, a sua boa
aparência era tão externa, que se pudesse ser olhada por dentro nos faria
chorar por tanta amargura que carregava em seu coração.
As duas não se falavam muito, mas
naquela tarde decidiram saber por que isso acontecia. Falaram-se um pouco sobre
assuntos diversos, e sobre o que estavam fazendo da vida. Fátima a todo o
momento olhava as expressões e a roupa de Ana Lucia, aquilo que conhecemos como
“fazer uma geral com o olhar”, com um sorriso de ar simpático, Fátima olhou
para a vizinha e sem fazer nenhum rodeio perguntou:
- Qual é a sua finalidade no
mundo?
- Como assim? – Respondeu Ana
Lucia completamente perdida com a pergunta. – Eu não entendi o que você quis
dizer.
- É simples. – Respondeu a vizinha
em tom debochado enquanto admirava as unhas. – Pra que você serve? Lavar as
roupa dos seus filhos, que nem lembram que você existe, e passam dias fora de
casa, sem mesmo te dar satisfação. – A vizinha pigarreou. Será que você nunca
enxergou como as pessoas te usam! Ninguém se importa com você. - Ela gargalhou.
- Querem as roupas lavadas e a comida pronta!
- Eu não entendo por que esta
dizendo isso! – Respondeu Ana Lucia indignada. – Eu amo a minha família, e
cuido de todos com muito zelo e amor por que tenho vontade!
- Não acredito em você. Você faz
isso por que não tem outra opção. – Fátima sorriu tentando parecer serena. –
Então me responda o que você faz por você? Quem é Ana Lucia no mundo? Diante do
mundo e para o mundo? Você não é nada!
- Isso não é verdade Fátima! –
Disse Ana Lucia em tom desesperado. – Por que me diz isto?!
- Mas eu não estou dizendo isso
para te chatear. – Disse Fátima com tanta certeza que até eu acreditei, e garanto que você acreditaria se estivesse lá. – Eu quero apenas que você se
enxergue como alguém importante, e não uma maquina de limpar sujeiras, e limpar
casa, e lavar, e cuidar, e muito mais coisas, que eu não sei e nem quero saber,
por que nunca quis uma vida dessas pra mim!
- Mas eu não penso isso. Os meus
filhos não são assim, somos uma família, e todos nos ajudamos. – Respondeu Ana
como se tentasse se convencer do que dizia.
- Faz-me rir! – Gargalhou a
mulher novamente. – Amiga... Você não precisa mentir, moramos muro a muro à
muitos anos, conhecemos mais uma da outra do que queremos.
Isso era verdade, neste momento
Ana Lucia lembrou-se de todas as coisas que ouvia da vizinha mesmo sem querer,
assim como devia acontecer com ela, realmente se conheciam mesmo sem se falar.
- Eu não entendo por que esta
dizendo isso de mim, eu não me incomodo em ajudar a minha família.
- Você não ajuda minha querida,
você é uma escrava, uma empregada... – Ela riu debochada. – Se você não fizesse
nada em casa, eles arrumariam uma empregada, e você seria o que?
Ana Lucia ficou muda, não
conseguia encontrar respostas para aquilo, na verdade jamais havia se perguntado
algo do tipo.
- Sem contar o seu marido né! – Fátima olhou a vizinha e deixou seu rosto indiferente dizer o que queria.
- O que tem o meu marido? –
Perguntou Ana Lucia exaltada.
- Não tem nada... – Ela riu. –
Defina você mesmo. Eu já disse que você não tem vida, você vive a vida das
outras pessoas, eu não falo por mal, de verdade. – Ela baixou os olhos. – Eu
não sei se a minha vida esta certa, mas precisamos saber quem somos!
- E você sabe? – Perguntou Ana.
- Não ao certo, mas estou muito
mais perto que você.
- Eu não acho isso. Eu faço o que
quero, eu tenho liberdade de viver o que eu quero, mas quero viver isso, e
gosto disso.
- Eu duvido! – Disse Fátima com
certa arrogância. – Não quero te chatear, já que você escolheu isso eu não irei
dizer mais nada.
Ana Lucia já estava irritada,
inquieta e impaciente, aproveitou a deixa da vizinha no mesmo instante e já
emendou:
- Esta bem, eu tenho que entrar
para preparar o jantar. Foi um prazer conversar com você.
- Boa noite. Disse Fátima.
Ana Lucia entrou as pressas,
assim que olhou o relógio da cozinha viu que havia passado tempo demais falando
com a vizinha. Começou a mexer nas panelas, e viu que havia se esquecido de
descongelar a carne para o jantar, aquilo a deixou irritada. Passou em frente
ao espelho do corredor e notou que o cabelo estava muito oleoso, também notou
que não tinha corte, passou a mão pelo rosto e viu a pele cheia de manchas.
Bufou insatisfeita e resolveu tomar um banho, decidiu que depois que se
sentisse melhor prepararia o jantar.
Ana Lucia não se lembrava da
ultima vez que havia tomado um banho tão demorado, tocou a sua própria pele de
forma diferente, deslizava as mãos pelo seu corpo como um lugar desconhecido, a
correria do dia a dia não lhe permitia muitos mimos, e demorar muito ao tomar
banho era um deles. Enquanto sentia a água quente cair por seus ombros, Ana
Lucia ouviu uma voz grave: - Quem é você!? Apesar de ter ouvido a pergunta
daquela voz estranha, Ana ignorou, devia ter se lembrado do que disse Fátima poucas horas antes, e continuou a tomar o seu banho, mas logo se lembrou da
hora, logo os filhos chegariam da faculdade e do trabalho, e ela não tinha
feito nada. Saiu imediatamente do banho e depois que se trocou foi logo para a
cozinha. Assim que tocou na panela, a voz grave repetiu: - Quem é você!?
Ana olhou para os lados, só podia
estar ficando louca. Em instantes a filha chegou, e logo em seguida o filho.
Ambos eram adultos, trabalhavam e estudavam, mas nada faziam em casa para
ajudar, talvez por falta de tempo, ou disposição, na verdade, além de qualquer
coisa não tinham o costume de precisar fazer nada, além de jantar e tirar o
prato da mesa. Ana Lucia era mesmo alguém muito eficiente, tudo estava sempre finalizado
e impecável, mas naquela noite nada estava pronto. A filha foi a primeira que
reclamou, irritada ao ver que a mãe não tinha iniciado o jantar, disse que
estava cansada e com muita fome, e a única coisa que desejava era jantar e
dormir, mas a mãe não foi capaz de lhe proporcionar isso.
O filho não foi diferente, mal
cumprimentou a mãe quando notou que a irmã reclamava e fez o mesmo, se juntou a
irmã para dizer como aquela situação era inaceitável. Ana Lucia se enfureceu,
mas não respondeu nada aos filhos, ela sabia que eles não deviam lhe cobrar
daquele jeito, mas se sentia confusa para responder algo, talvez aquilo tenha
sido realmente uma falha em seus afazeres.
O marido chegou, e deu-lhe um
beijo na testa, mas quando notou que Ana ainda preparava o jantar, demonstrou
logo sua insatisfação, disse a esposa que não entendia por que a mulher havia
ficado em casa e não conseguiu fazer o jantar a tempo de quando chegaram todos.
Perguntou o que ela fez de diferente para não conseguir fazer o de sempre, e também
queria saber por que afinal o seu cabelo estava molhado. O que a fez tomar
banho durante a tarde!?
Ana Lucia ignorou a todos,
sentiu-se tão mal como jamais sentira antes, talvez a vizinha estivesse certa,
e ela não passasse de uma empregada, já que ninguém perguntou sobre ela, apenas
sobre o jantar, e até o marido sempre tão agradável lhe pareceu passivo de
desconfiar de sua honestidade. Naquela noite Ana ficou a admirar a sua família
enquanto jantavam. Todos se fartaram, e nem mesmo notaram que ela mal tocou na
comida, talvez achassem que fosse um favor lhe dar o que cozinhar, e serem
alguém para que ela cuidasse, talvez eles se sentissem como os responsáveis pela
vida de Ana Lucia acontecer, e ela sentiu que vivia em torno deles, e só.
Ana Lucia se sentiu triste, foi
se deitar primeiro que todos, e para sua surpresa ninguém se importou, parece que
não fazer o jantar no horário de sempre irritou mesmo os moradores da casa. Ana
logo adormeceu, mas foi acordada no meio da madrugada:
– Quem é você no mundo? - Ana Lucia saltou da cama, o marido
acordou assustado e pediu que ela fosse dormir. Ela disse que ouviu alguém
chamar por ela. Mas o marido disse que ela fosse dormir, provavelmente não era
nada, e amanhã ele levantaria bem cedo para ir ao trabalho, e ela poderia
dormir até tarde, assim ele se virou para o lado e dormiu rapidamente.
Nesta madrugada Ana Lucia não
conseguiu mais dormir, ficou pensando tantas coisas que só de contar já causa
desespero, lhe veio à mente todas as palavras grosseiras dos filhos e marido,
então a voz voltou a dizer: - Ninguém se importa com você, nem insista.
Você não existe! Você não é nada! Ana Lucia se sentiu em desespero
estava começando a ficar com medo daquelas vozes, existia algo errado com
aquilo, tinha vontade de gritar de medo, mas imaginou que pudesse ser
perturbação de sua cabeça. Mesmo não
sendo muito ligada a religião ela começou a rezar, e pedir tranquilidade em seu
coração, e logo adormeceu. Assim que acordou sentia-se bem, lembrou-se de seus
sonhos de adolescência, e dos planos de ter uma família, se recordou dos filhos
pequenos brincando pela casa. Então ouviu uma voz suave dizer: - Você é grande, todos somos grandes,
acredite que você é grande.
Ana jamais comentara sobre as
vozes que ouvia, tinha medo de parecer louca e até ser internada por isso, e
sentiu na pele o que as vozes poderiam lhe causar, pois é incrível como quando
se está perdido as coisas acontecem para piorar, parece que o mundo pretende
degradar você. Certa as vozes de Ana interferiu seriamente na sua vida. Assim
que o marido chegou, a voz disse para que ela olhasse no bolso dele, e lhe
falou que ele estivera com outra mulher e que se atrasou por este motivo. Ana
Lucia fez o que ouviu, revistou os bolsos e encontrou um bilhete com um
telefone e o nome de uma mulher. Neste dia a casa quase caiu. Ana Lucia avançou
no marido, disse que ele a estava traindo e foi a maior briga, o marido jurou
de pé junto que não era nada do que ela estava pensando, mas até hoje não se
sabe de nada. Sabe-se apenas que depois disso os dois ficaram ainda mais
distantes do que já estavam.
Os filhos ao ver a mãe a cada dia
mais triste e sem animo para fazer as coisas de casa, contrataram uma
empregada, que fazia de tudo, e ainda ficava de olho em Ana Lucia, que não
dizia nada, mas ouvia: - Tá vendo como eles são, depois que morreu
Miranda, como as coisas andam! Você não é útil. Você não é nada! Ana
Lucia se enfureceu, não era possível que ninguém se importava com ela, não era
possível que ela era apenas quem cuidava das coisas. –
Acalme-se. – Disse a voz tranquila. –
Não leve isto a sério, reaja, converse com eles, não se entregue.
Indignada Ana resolveu que iria
trabalhar, mas ninguém a queria, não
tinha diploma algum, nem mesmo entendia de internet, tentou por duas vezes
fazer faxina em casa de família, e além de pagarem pouco, os filhos acharam um
desaforo terem uma empregada em casa enquanto a mãe queria fazer faxina na rua,
e nas duas vezes foram até o trabalho da mãe busca-la. Foi depois disso que a
mulher ficou ainda mais depressiva, sem ação alguma, Ana Lucia não sentia que
tinha forças para lutar contra qualquer coisa, ela havia feito escolhas ruins e
agora não sabia como fazer para muda-las.
Em pouco tempo Ana Lucia começou
a beber, tomava conhaque, uísque, ou que tivesse de alcoólico em casa. O marido
disse que não colocaria mais nada de álcool em casa, pois não queria que ela
bebesse, Ana ficou furiosa, pegou algumas coisas de casa e vendeu em troca de bebida,
a mulher estava muito revoltada, a cada dia entendia que a voz grave era a que
estava certa, não tinha nada que a fizesse acreditar na voz tranquila, pois ela
queria que Ana continuasse a ser escrava, inútil e sem reação, e isto Ana não
estava mais disposta a ser.
A cada dia Ana se sentia mais
triste, não fazia nada em casa, e sempre ouvia as vozes... Continuava a brigar
com o marido, e começou a pegar dinheiro dos filhos e do marido, ou o que visse
pela casa, e usava para beber no boteco da esquina. Agora era oficial, a
exemplar mãe de família havia se tornado alcóolatra. Mas o marido não lhe
negava mais dinheiro, ou ela fazia escândalos de varias naturezas.
Os filhos a levaram ao medico,
psicólogo, neurologista, entre outros, queriam ter a mãe de volta, o médico
disse que era uma doença moderna, mas que sempre existiu, a tal da depressão,
os filhos a esta altura pareciam realmente preocupados, mas talvez fosse tarde.
– Eles mentem, querem a mesma
empregada, é tudo fingimento. Ana Lucia se sentia confusa,
enquanto a voz grave dizia isso, a outra insista: - Dê a eles mais uma chance, todos te amam, não se entregue a
amargura, o amor esta em você. Mal uma falava e a outra dizia também. – Os deixe só! Cuide da sua vida, não faça
mais nada por eles, são todos mentirosos!
Ana Lucia estava a ponto de
enlouquecer, mas a ninguém contava sobre o que ouvia, e depois de ouvir a filha
falar sobre internação em clinica de reabilitação, foi o bastante ela se
entupir de álcool, e em uma das idas ao boteco também experimentou drogas,
neste dia a mulher passou dos limites e por incrível que lhe possa parecer ela ouviu
a voz grave ainda mais alta, constante e viva, e foi a ultima vez que a voz
aguda lhe falou algo que ela não faz ideia do que era.
Depois desse dia não me lembro de
mais ter ouvido falar na sobriedade de Ana Lucia, na verdade, para eu me
lembrar disso precisaria ler este conto desde o inicio, para assim tentar
entender o que aconteceu de verdade com aquela mulher, e em que detalhe ela se
deixou perder de si mesma.
Após vários cuidados médicos, Ana
começou a tomar alguns calmantes, isso a ajudou inicialmente, e a voz a deixou
em paz por algum tempo, em algum momento até se teve sinais de que Ana Lucia poderia
ser tornar lucida novamente, e não digo que seria aquela antiga dona de casa de
sempre, mas que saberia falar sobre si, e que pensaria em algo para a sua vida
além de beber e se drogar.
Ana parecia bem certa tarde, pena
que as aparências enganam. Ouviu a voz gritar tanto em seu ouvido que parou para
ouvir, não falou mais nada, não tentou responder, nem a ignorava mais, tentava
entender por que ela dizia tantas coisas sobre a sua existência, e por que
tantos questionamentos quanto a sua utilidade no mundo e na vida das pessoas.
Ana não entendeu, mas havia aprendido um jeito de silencia-la. Aquela tarde
resolveria tudo.
Pegou o seu frasco de calmante com
cerca de trinta comprimidos e os tomou de uma vez, afinal se apenas um era
capaz de silenciar a voz por uma noite, certamente todos sendo ingeridos com
uísque teriam um efeito muito mais eficaz.
As vozes se calaram de uma vez, e também silenciou
Ana Lucia, assim se acabaram as perguntas e as duvidas, e se tornou nada tudo o
que lhe restara, assim sua perturbação teve fim.
Ninguém a sua volta conseguiu entender o que
aconteceu com Ana Lucia, cada um criava um motivo a sua maneira, e em cada
explicação podíamos acreditar em suas razoes. A sua família logo se refez,
marido e filhos seguiram em suas vidas, pois sempre seguem, e quando isso não acontece
terminam como Ana Lucia.
As doenças da mente podem ter varias formas e nomes,
o importante é não se perder e ser forte, a cada um de nós cabe a decisão de
entender a própria existência, e negar ou silenciar as suas indagações pode ser
ainda pior que a morte, pode ser a desistência de seguir.
Por: Grazy Nazario.