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terça-feira, 9 de junho de 2015

Conto - A Profecia

Série - Mais um conto que eu conto.

A Profecia

Maria Luiza sempre fora de hábitos simples, mulher religiosa, daquele tipo que vai à missa todos os domingos, se confessa de tempos em tempos e cumpre todos os preceitos da religião. Ainda jovem escondia sua pouca idade sob as rugas já aparentes no seu rosto suado e de semblante cansado. A mulher de nome de santa, não se cansava de trabalhar, ainda criança já trabalhava com os pais na roça, todos os dias mal o céu começava a ficar rosado, já era arrancada da cama junto aos irmãos, e iam todos ainda bem cedinho pra lida.

Assim que se casou com João Gerônimo a sua vida mudou um pouco, não muito, mas na roça ela já não trabalhava mais, mas ainda assim, ajudava no sustento da casa, a danada não tinha medo de trabalhar, cuidava com zelo de sua casa, que ficava no centro da pequena cidade ao norte de onde passara toda a sua infância e adolescência, a jovem de pele escura queimada de sol, e olhos amendoados, lavava e passava as roupas para quem pudesse lhe pagar, também fazia serviços de limpeza na escola da cidade ou nas poucas casas que podia lhe dar qualquer trocado em troca de uma boa limpeza e arrumação da casa.  

Naquela semana especialmente Maria Luiza estava radiante, voltava da igreja quando sentiu um chute forte em sua barriga, até parou um pouco pra respirar. Era o seu bebê, dando o sinal diário que ela tanto gostava de sentir, faltava pouco para a criança nascer, enfim Maria ia saber se era menino ou menina, embora soubesse, sem saber explicar como, que seria um menino, e contava os minutos pra pegar seu rebento no colo.

E assim aconteceu, em menos de uma semana Maria Luiza estava com seu menino nos braços, colocou o nome da criança de Gilberto, por que tinha a inicial do marido, e por que achou que o nome era bonito, assim como o seu filho, de pele negra e olhos negros como jabuticaba.

A vida de Maria da roça continuou pesada, e depois do nascimento de Gilberto os seus dias de trabalho se tornaram um pouco mais penosos, mas apesar de todas as dificuldades que passava, Maria tinha a sensação de que aquilo era o que ela precisava para viver, como se nem mais ou menos fosse o caminho da sua vida, não se sentia pobre ou miserável, nem tinha pena de si por nada. Muitas vezes ouvia algumas colegas da igreja pedir a Deus melhorias de tudo e para tudo, mas a mãe de Gilberto sempre agradecia pela vida, e pedia saúde e paciência, e sabia que aquilo lhe bastaria, e que sua vida seria daquele modo, até os seus últimos dias.

Gilberto estava com três meses de idade quando Maria teve o dia mais estranho de sua vida, voltava da igreja com seu menino nos braços, o garoto forte e risonho chamava a atenção de todos, e na cidade todos já sabiam quem era o filho de Maria da roça, mas a mãe de Gilberto jamais imaginaria o que a aguardava. Aquela tarde de domingo seria inesquecível para mãe e filho.

Enquanto andava pela calçada Maria escutou passos atrás dela, mas não se importou e continuou andando. Assustou-se quando olhou a frente e viu uma mulher parada, feito uma assombração!


- Oi Maria. – Disse a mulher vestida aos farrapos.
Maria olhou a mulher de cima a baixo, sem conseguir esconder o quanto estava assustada, suas mãos ficaram tremulas. “Como esta mulher que mais parece uma cigana ou uma andarilha, sabia o seu nome”? – Pensou Maria. Mesmo vivendo em uma cidade pequena, Maria sabia que nunca tinha visto aquele focinho sujo na sua vida.
- Quem é a senhora? – Perguntou Maria segurando firme Gilberto no colo, como se protegesse um tesouro.

- Acalme-se Maria. – Disse a velha de cabelos grisalhos e olhos esbugalhados. Eu não vou fazer mal ao seu filho. – Respondeu a velha, como se ouvisse os pensamentos de Maria da roça.

- O que a senhora quer? Eu nunca vi a senhora por este lugar! – Perguntou Maria com os olhos assustados enquanto olhava para os lados à procura de um rosto conhecido, o que normalmente não era difícil, mas naquele momento, parecia que a cidade se tornara um deserto, a rua estava completamente vazia, era só Maria e a tal velha que usava farrapos no lugar de roupas.

A mulher se aproximou de Maria, ignorando o seu medo, que parecia se espalhar pelo seu corpo e escapar por seus olhos, voz e respiração, a velha tocou as pernas do bebe Gilberto, que lhe sorriu.

- É bonito o seu filho, e forte. – Disse a cigana.

- Eu preciso ir senhora. – Respondeu Maria. Ignorando o seu elogio, e em seguida ensaiou a sua retirada, mas antes de iniciar seus passos, a velha se pôs à frente de Maria e a encarou com frieza:

- O seu menino tem um grande carisma, ele causará uma grande mudança na sua vida, teu rebento conquistará muitas amizades na vida, gosta de um aconchego, e tem bom coração... – A mulher pigarreou, e em seguida cuspiu na rua.

Maria ficou em silêncio, como se respeitasse os seus elogios, continuou calada, como quem ouve uma profecia. Mesmo sem acreditar em adivinhações, Maria sentiu que a mulher poderia apenas desejar algo bom para sua criança.

- Ele terá pernas fortes. – Disse a velha ao colocar novamente as mãos nas pequenas pernas de Gilberto. – Ele será muito habilidoso, terá sucesso nos esportes, enquanto for possível ele se destacará... – A mulher suspirou e meneou a cabeça. – Talvez jogador de futebol ou coisa do tipo.

- Eu preciso ir! – Disse Maria como se fosse interrompida de um transe, e em seguida saiu andando, soltando-se dos braços da velha cigana.

- Espere! – Gritou a velha com irritação, e segurou forte em seu braço. – Este menino não vivera após os doze anos de vida na terra, ele morrerá de arma de fogo. Ele fará você entender o que pensa que sabe.

- Solta o meu braço sua velha louca! – Gritou Maria Luiza. – Eu vou gritar. SOCORRO! – Berrou Maria inutilmente.


- Não adianta a senhora gritar, terá que aprender as coisas com este garoto. – Disse a cigana como uma metralhadora de palavras. – Ele será seu único filho, e não importa o que fizer, este é o destino dele.

- Cale a sua boca! A senhora esta rogando praga no meu filho, sua louca! – Gritou Maria aos prantos. 

– Eu confio em Deus! – Disse Maria e ergueu a bíblia que estava em sua mão, é nela que eu me apego, aqui esta a verdade! – Berrou Maria, ao girar o corpo e olhar pra trás, até constatar que a mulher havia desaparecido.

Maria respirou fundo, o pequeno Gilberto começou a chorar depois de toda afobação, a mãe do garoto olhou por todos os cantos e não viu a mulher. Será que eu tive uma alucinação? Pensou ela. Não é possível uma velha vestida como uma mendiga ter falado tanta mentira pra mim! Que mulher louca!

Assim que chegou em casa, Maria contou tudo ao marido, o pai de Gilberto não deu muita atenção para o desespero de sua mulher. Maria era pura preocupação. Decidiu que na manhã seguinte falaria com o padre da igreja, também se lembrou de uma benzedeira que as vizinhas comentavam dali de perto, pediria permissão ao padre para visita-la, não via por que o padre lhe impediria de procurar qualquer pessoa disposta a ajuda-la. O marido a orientou, disse que aquilo era uma mentira, que a mulher era uma louca que queria só assusta-la, em seguida orientou que ela tomasse um copo de água com açúcar que tudo passaria.

E assim Maria fez, tomou a água com açúcar, e também todas as providencias que considerou importante. Jurou que faria uma vez por mês uma reza com terço, em pedido especial pela guarda do pequeno Gilberto, também faria uma promessa ao santo que mais confiava, além de todos os seus afazeres religiosos comuns, que já não eram poucos. Só de pensar no que tinha dito a mulher, Maria se estremecia.

Poucos meses depois, o pai de Gilberto chegou em casa radiante, havia recebido uma boa proposta de emprego, iria ganhar mais e mudaria de cidade, onde teria direito a casa, e algumas mordomias que nem em seus maiores sonhos seria possível naquela pequena cidade esquecida por tudo e todos. Maria ficou muito feliz, mesmo sendo mulher humilde, qualquer melhoria que fizesse o estomago não roncar seria bom naquele momento.

Com o passar dos anos Gilberto foi crescendo cada dia mais saudável. Por volta dos sete anos do garoto, Maria engravidou, mas a menina que esperava não completou o quinto mês, e ainda na gestação não vingou. Depois deste desgosto, Maria da roça decidiu que não queria mais ter filhos, apenas Gilberto estava de bom tamanho.

Gilberto era um garoto muito carismático, e tinha amizade de todo tipo de criança, muitas vezes Maria presenciou disputa pelo menino, todos diziam que ele jogava futebol melhor que os jogadores profissionais, podia ser um pouco de exagero, mas o garoto sabia mesmo agradar aos colegas.
Já aos dez anos Gilberto estava um rapaz forte e grande, ajudava a mãe ao máximo em seus afazeres de casa, era pouco estudioso, gostava mesmo de ficar na rua, mesmo contrariando a vontade da mãe. Com o bom emprego do marido, e todas as melhorias que tiveram ao longo dos anos, Maria já não fazia mais faxina na casa dos outros, mas gostava de fazer tricô e vender para as vizinhas.


Certa noite o marido de Maria chegou afobado, parecia alegre e preocupado. Entrou na sala onde Maria tricotava e a chamou com urgência. Tirou de dentro de uma bolsa um revolver. Maria da roça sentiu as suas pernas estremecer, as suas mãos tremiam tanto, e o seu coração ficou tão acelerado que ela não conseguia juntar duas letras para formar nenhuma palavra.

Puxou a cadeira pra recuperar o folego, e puxou o ar com dificuldade. Maria Luiza foi direta. Ou João Gerônimo sumia com aquilo de sua casa, ou ela voltaria para roça com Gilberto. Maria disse que cavaria e enterraria aquela coisa do diabo! E se ele tentasse a impedir não sabia o que era capaz de fazer! O marido se assustou com a fúria da mulher, sempre tão calma e compreensiva, aquela reação não era nem de perto a que ele esperava, quando decidiu comprar uma arma para se defender dos assaltos cada vez mais frequentes no bairro.

Joao Gerônimo a questionou, disse que ela estava invocada pela profecia que a velha havia feito anos atrás. Maria quase usou a arma contra o marido ao ouvir tal afirmação, disse que o seu Deus era maior que uma mulher esfarrapada com cara de louca!

A briga durou um pouco mais de tempo, mas Maria não desistiu, fez o marido sumir com a tal arma de casa, disse que ele vendesse ou doasse, mas que aquilo não dormiria nem um dia em sua casa. E assim o marido fez, saiu de casa sem rumo, ou a procurar um rumo para o objeto da discórdia até então.

Gilberto que não ouvira a discussão chegou da casa do amigo, e perguntou pelo pai. Maria ao olhar os olhos negros e cheios de vida do filho, danou a chorar, abraçava o menino com todas as forças que possuía, sentia o seu corpo doer em pensar como seria a sua vida sem a alegria daquela criança, o sentia como a sua própria vida, e sentia o seu coração parecer despedaçar ao pensar em não ter ele por perto. Lembrou-se das palavras da tal cigana. “Pra que aquela desgraçada me disse isso”? Se fosse assim, eu não precisava saber, mas como ela falou, tenho medo sempre que me lembro dela! – Sussurrou Maria tentando esconder as próprias aflições de seu coração. Mas eu tenho fé nos meus santos! Ela afirmou para si mesma. Decidiu que não pensaria mais nisso, como fizera durante muito tempo, logo Gilberto completaria seus treze anos e nada mais a perturbaria. Após aquela noite de pranto intenso, Maria da roça não pensara mais no assunto, como se um manto passasse em sua cabeça, ela se esqueceu completamente do assunto dito pela velha cigana.

 Gilberto já tinha doze anos, perto de completar treze, quando jogava bola no campinho da sua cidade com os seus amigos. Um homem forte e usando muito ouro se aproximou do garoto e disse que queria conhecer os seus pais.  Na mesma noite, o tal homem se apresentou para a família, era dono de um grande time de futebol, e queria muito levar Gilberto para jogar futebol no exterior, o salario era coisa de outro planeta, e a família o acompanharia em tudo. Joao Gerônimo ficou eufórico, jamais imaginaria isso para o filho, era muito bom pra ser verdade. Maria não se animou muito, mas viu um brilho no olhar de Gilberto que parecia uma estrela, o próprio sol, Gilberto não abriu a boca, mas o seu sorriso era a melhor resposta para qualquer que fosse a pergunta.

Por fim Maria concordou com o marido, e se era a vontade do filho, ela não o impediria. O homem disse que assim que Gilberto fizesse treze anos o buscaria, pediu que providenciassem o passaporte e marcaram o dia da viajem. Em poucos dias depois da conversa chegaram as passagens, todos estavam eufóricos, os amigos, os vizinhos, a família, era um acontecimento de grandeza incalculável.

Faltavam poucos dias para Gilberto viajar, e dois dias para o seu aniversario, Gilberto até tentava ser o mesmo menino, mas a ansiedade tomava conta dele, não conseguia se alimentar direito, e só queria estar com os amigos para se despedir, queria fazer tudo o que fosse possível antes de ir embora. Quando chegou em casa do mercado, Maria Luiza abraçou o filho, e o olhou nos olhos, disse a ele que estava feliz por ele fazer algo que gostava tanto, a mãe passou a mão em sua cabeça raspada, seus braços eram fortes demais para um menino de doze anos. Maria pediu para que o filho não saísse mais aquele dia, Gilberto a questionou, queria sair, precisava fazer de tudo enquanto ainda estava ali. “vou embora, e não vou mais ver ninguém, é a minha ultima chance”! - Disse o garoto. - Maria riu, e pediu para que o filho deixasse de ser exagerado, embora soubesse que a sua vida ia mudar, depois de sair do país, nada mais seria como antes.

Gilberto não saiu mais de casa naquela tarde, prometeu que apenas chamaria o vizinho para que conversassem, enquanto a mãe resolvia os detalhes da viagem. O amigo de Gilberto mal entrou pela porta, já foi dizendo que queria ver o que o amigo tinha contado no outro dia. Gilberto se certificou de que a mãe já estava longe de casa, foi até o quarto dos pais acompanhado pelo amigo afobado. Gilberto subiu no banco até alcançar a caixa que estava em cima do armário encostada na parede, puxou a caixa e a colocou na cama.

 Os olhos do amigo brilharam, assim que olhou queria pegar na arma de todo jeito. Gilberto não deixou, disse que precisava ver se estava armada, como o pai lhe ensinara. Gilberto pegou a arma e olhou calmamente, segurou o cabo e olhou para o cano. Os olhos de Gilberto escureceram.
A certa distancia dali, Maria sentiu uma pontada no peito, o seu ar faltou, ela fechou e abriu os olhos com desespero, como se faltasse a luz, como se lhe roubassem a vida. Correu tão rápido em direção a sua casa, que não conseguia diferenciar se corria ou voava, logo estava na frente de sua casa, na sala, no quarto, no chão, ao lado de Gilberto, coberta de sangue, mergulhada na dor.

O silencio de Maria da roça pode ser ouvido à distância depois do disparo, como se a esperança morresse, como se vida não vivesse. Depois desse episodio ninguém dali de perto viu Maria.

Muito se ouviu dizer sobre o que acontecera à mulher da roça que iria morar no exterior, alguns disseram que ela perambulava por ruas em cidades pequenas, outros contaram que ela passou a blasfemar a tal velha que praguejou seu pequeno garoto, também se ouviu que ela desacreditou da religião e virou coisa ruim pelo mundo. Eu prefiro acreditar que Maria entendeu as coisas devagar, assim como sentia que e vida devia ser, e tudo que ela precisava aprender aconteceu, mas ela só perceberia depois que a dor tivesse fim, isso se tivesse fim algum dia.




Escrito por: Grazy Nazario. 

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