Foi
com seu jeito simpático e alegre que Miguel, um senhor de idade cheio de
historias ganhou o coração e a confiança de todos a sua volta. Sempre com
palavras sábias, bons conselhos e um sorriso nos lábios, o velho Miguel, como
gostava de se referir a si mesmo, era a sensação de onde vivia. Apesar de estar
perto de completar um século de vida, Sr. Miguel esbanjava disposição e vigor, não
dispensava o perfume, nem as roupas bem cuidadas, e não passava em lugar algum
sem mexer com alguém, queria ser notado, e sempre era.
O velho Miguel há alguns anos vivia em uma casa
de repouso, mas parecia que nem tinha consciência disso, ou talvez nunca
quisesse ter, e se comportava como se estivesse em sua própria casa. Ele vivia na
ala leste, que era a divisão em que ficavam os mais “dispersos” da cabeça, ou com
problemas mentais, ou de assimilação, ou como você achar melhor classificar. Eu confesso que me impressionei ao ver aquele
simpático velhinho na ala dos “observados”, mas tive que considerar que talvez
o fato de sua idade avançada fosse um motivo para estes tantos cuidados.
O
lugar onde Sr. Miguel estava hospedado era numero 1 no segmento, a mensalidade
do lugar era caríssima, e só pessoas com muito dinheiro poderiam pagar. O Sr.
Miguel não tinha do que reclamar quanto as suas roupas, sapatos, ou qualquer
objeto para a sua higiene pessoal ou qualquer outra coisa. Tinha televisão,
jogos de palavras, que inclusive era fã, pois dizia o ajudar a manter a mente
alerta, além disso, seus discos preferidos sempre podiam ser ouvidos do seu
quarto. Também fazia tarefas esportivas e quando não estava chovendo podia ir
sempre ao imenso e belo jardim.
Mas
as coisas mudam, o velho Miguel sempre dizia isso, e aconteceu com ele. Um belo
dia, aliás, isso não é verdade, o dia estava bem chuvoso, Miguel ficou a
observar a chuva por um longo tempo, e sem nenhum tipo de explicação plausível,
algo mudou. Estava perto dele completar noventa e nove anos quando a equipe de cuidadores da Ala leste
notou uma mudança no comportamento do velho Miguel, sempre tão alegre e
brincalhão, o paciente do quarto 22 já não era mais o mesmo, ficara sem
apetite, não estava tão incomodado com a aparência, nem mesmo o seu simpático
elogio com o cabelo das enfermeiras ele estava fazendo. Estranhando o
comportamento, a enfermeira responsável por seu setor se preocupou, e resolveu que
deveria conversar com ele, talvez fosse algo ligado a sua hospedagem, e um
hospede como o Sr. Miguel insatisfeito não era nada bom para a imagem do Asilo.
Assim
Rita foi até o quarto 22, com a sua doçura de sempre, a moça perguntou sobre as
acomodações, a comida, e o tratamento à ele por parte dos cuidadores. O velho
Miguel por sua vez, foi enfático. Disse que estava tudo bem, e que não existia
nenhum problema com as meninas ou os rapazes que o ajudavam, e que a comida
continuava muito boa, as pessoas atenciosas tanto de limpeza, ou de qualquer
outro setor, e que até o guarda Matos, o rapaz que cuidava da entrada e saída
de pessoas, até mesmo ele, continuava insolente, ou seja, estava tudo igual.
-
Mas o senhor não parece bem Sr. Miguel. Eu estou preocupada. - Disse Rita, que
realmente nutria um cuidado especial com o bom velhinho.
-
Estou normal minha querida. – Ele disse com pouco entusiasmo. – Não tem por que
preocupar-se com este velho aqui, deve voltar a sua atenção para as suas
coisas. Tem pessoas aqui que precisa de mais atenção e cuidados do que eu.
-
Todos precisam Sr. Miguel, por isso estão aqui. – Disse a mulher de forma
gentil.
-
Não minha querida. Estamos aqui por que somos abandonados. – Disse o Sr. Miguel
sem magoa, e com uma franqueza inacreditável.
-
Não diga isso, Sr. Miguel. – A mulher sorriu como quem esconde uma afirmação. –
O Sr. Nunca pensou assim, sempre viveu bem aqui, fez amigos... É de se
estranhar este comportamento. Aconteceu alguma coisa?
-
E o que precisa acontecer pra você mudar? As coisas mudam mesmo minha querida,
estamos vivos, e é isso o que acontece com a opinião e a vontade das pessoas,
mudam. Eu não morri, estou aqui neste mundo ainda, logo completo cem anos, e
tenho uma visita mensal de apenas uma filha.
-
A sua filha não o visitou este mês Sr. Miguel? – Perguntou Rita, como se algum motivo
existisse em algum lugar daquela conversa.
-
Mas eu criei quatro filhos! – Disse o velho Miguel sem se exaltar, ou responder
a pergunta de Rita. – Eles estão fortes e robustos, eu tenho uma filha de
setenta anos! Mas onde estão os outros? O que devemos esperar dos nossos
filhos, por que eles são obrigados a nos amar e se dedicar a nós? Não tenho pena de mim por isso, eu sei que sou
meio esclerosado, e estou sob um monte de pelancas, tive tanto trabalho pra
conseguir dinheiro, e agora estou aqui! – Ele suspirou, os seus olhos não tinham
brilho, e era indecifrável o tom de suas palavras.
-
Eu não quero o senhor assim, isso não esta certo! – Disse Rita com sinceridade.
-
Eu quero sair daqui minha querida. Quero ir para o mundo e rever as coisas que
dão sentido a vida. Será que ainda existem? – Ele se perguntou e esbugalhou os
olhos para a enfermeira.
-
Claro que sim. – Ela respondeu com uma certeza, que até hoje eu não encontrei.
E que também não convenceu o velho Miguel, fato que ficou muito claro para a
enfermeira.
Preocupada
com o ilustre paciente, Rita se organizou em fazer algo para agradar o quase
centenário, e melhor cliente da casa de repouso. Chamou a filha mais
participativa, e lhe contou o que acontecera, e até ousou pedir para os outros
filhos o visitarem. Claro que a resposta não podia ser diferente, os dois filhos
disseram que trabalhavam muito para manter o patrimônio da família, e não tinham
como irem a um lugar tão longe, e que antes do centenário iriam com certeza. A
outra filha disse logo que não poderia ir, tinha viagem marcada pra Europa,
impossível de adiar para qualquer visita rotineira, e que a outra irmã já o
visitava por todos.
Rita ficou chocada com todos os relatos, e a
partir daquele momento passou a admirar o velho Miguel por ter mantido por
tanto tempo um bom humor admirável diante de uma realidade tão “estranha”. Ao
menos, foi assim que Rita se sentiu.
Mesmo
diante de todas as preocupações da enfermeira, Miguel tinha outras ideias.
Assim que recebera a ultima visita da filha, soube que era tataravô. Ficou
encantado, e assustado ao saber que a bisneta tivera um filho ainda tão jovem.
Mas ainda assim dizia que a natureza da vida era a reprodução, e que não
existia dom maior do que dar vida a outro ser. Talvez seja isso, ele disse para
si mesmo, talvez esteja aí o sentido de que estou falando.
A
partir daquele dia, Sr. Miguel colocou na cabeça que não queria mais ficar ali
dentro. Depois daquela tarde, todos os dias o velho pedia para ligar para a
filha, que depois da decima ligação decidiu não mais atendê-lo. Mas mesmo assim Miguel não desistiu, pediu pra
falar com o diretor da clinica, e se lamentou para as faxineiras. Na tentativa de
uma fuga, quase convenceu a cozinheira e a ajudante dela a facilitar a sua
saída pelos fundos da cozinha, mas para a tranquilidade de todos, elas tiveram
medo de que ele não chagasse a lugar nenhum, já que a clínica ficava longe do
centro, ou de outra cidade com transporte.
Aquela
situação se tornou preocupante para Rita e os outros funcionários, a partir
daqueles casos de escândalo envolvendo o Miguel, ficou fácil entender por que
aquele velhinho simpático sempre ficara na ala leste. E mesmo diante daquelas
tentativas frustradas e mudanças de humor, ninguém entendia por que aquele
homem dócil se tornara alguém obcecado em fugir de um lugar que sempre adorou
estar.
Como
era de se esperar o antes “bom velhinho” e agora “mala sem alça” Miguel não
parava quieto, as suas tentativas se tornavam a cada dia mais arriscadas, e
embora a família tivesse sido avisada, de nada adiantou, e nem mesmo na casa de
repouso apareceram. Mas em uma de suas peripécias, o velho Miguel aprendeu o
que significava “o corpo não acompanhar a mente”.
Numa manhã em que o velho tentou andar mais
afobado, o que todos temiam aconteceu, ele caiu, um tombo leve, mas que pode
custar caro para um quase centenário, e custaram sim alguns ossos. Como o
danado do velho continuava agitado, e ainda com a infeliz ideia de sair da casa
de repouso, Rita pediu que o amarrassem na cama. E como era de se esperar, isso
o deixou ainda mais irritado.
Mesmo
com a melhora do osso da perna, Miguel continuava teimoso, e nada tirava aquela
ideia da cabeça dele. Numa tarde, o Sr. Miguel dormia em sua cama, e ainda
amarrado acordou com a presença de um homem em seu quarto, abriu bem os olhos e
viu que uma enfermeira o acompanhava. Logo perguntou quem era o tal sujeito,
ela respondeu que era um homem que reformaria os moveis do asilo. Miguel ficou
reparando o homem tirar algumas medidas da poltrona e do sofá do seu quarto,
assim que viu a enfermeira sair do quarto, chamou o tal homem pra perto dele.
Ao chamar o homem para perto, o velho fez a
sua aparência carismática de outros tempos. Disse que estava amarrado à meses, e
que não se alimentava ou tomava nenhum remédio para dor, reclamou das roupas,
da sujeira, e também disse que tinha setenta e oito anos, mas que devido aos
maus tratos, parecia ter mais de cem! E assim se lamentou aos montes para o
inocente senhor e prestador de serviços gerais de tapeçaria. Aquilo mexeu
demais com o leigo trabalhador, ao olhar a situação o tal homem ficou
horrorizado, olhou o pobre velhinho amarrado, parecia sujo, e com certeza
aparentava pra lá de cem anos!
Assim,
o homem sem conhecer nada da historia de Miguel, tomou a atitude menos
aconselhável naquele momento. Primeiro ele pensou em desamarrar e ajudar o
pobre senhor a fugir, mas logo considerou que isso seria um crime! E os
criminosos eram os donos da clinica e não ele. Foi assim que o tal homem foi
até a televisão, vigilância sanitária, e todo e qualquer órgão que pudesse
levar algum fiscal a tirar o simpático velhinho daquele lugar horrível que
amarrava as pessoas e as deixava sem nenhum alimento, vivendo apenas à base de
soro.
Em
pouco tempo a televisão estava lá, e foi o maior fuzuê, muita gente, polícia, e
até as duas filhas do velho Miguel foram saber o que estava acontecendo. Claro
que era tudo mentira dele não é mesmo! Ele sabia que estava preso para não
tentar descer da cama e se machucar ainda mais, mas isso não importava, o que
ele queria era sair de lá, e conseguiu.
Pois
bem, mesmo depois da vigilância e outros órgãos certificarem que estava tudo de
acordo, o velho falou tão mal do lugar para as filhas, coisas que fez parecer
que viver em um presidio em superlotação parecia mais agradável do que o lugar.
As filhas sabiam que aquilo era um exagero, mas para evitar mais confusões
trataram de tirar o velho de lá.
Passaram-se
cerca de três meses, Rita estava na recepção principal quando ouviu insistentes
toques da campainha, logo se certificou que era a filha do Sr Miguel na
recepção, aquilo lhe causou estranheza, e desde um processo movido pela
família, até a morte do velho Miguel lhe passaram pela cabeça, mas para sorte
ou azar, não era nada disso. A filha dele entrou desesperada pela recepção da
clinica, perguntando por seu pai, disse que o velho havia fugido há no mínimo 12
horas. Rita se intrigou ainda mais! E logo questionou,
perguntando por que afinal o seu pai iria para a clinica, se a poucos meses fez
um alvoroço gigantesco para sair de lá.
A
filha do Sr Miguel logo se explicou para a enfermeira, dizendo que algumas
semanas depois que saiu da clinica o pai surtou, e disse que não queria ficar
naquele “mundo de loucos”, foi assim que ele descreveu, e que o sonho da sua
vida seria viver até a morte neste asilo. Rita se assustou, ou o Sr Miguel era
um idoso bipolar, ou completamente louco! Alguns minutos após esta conversa, Rita
enxergou o velho Miguel entrar pela porta:
-
Sr. Miguel, o que o senhor faz aqui!?
-
Pai, como o senhor veio parar aqui!? – Perguntou a filha de sr. Miguel
assustada.
-
Ué, eu vim no seu carro. Eu estava lá no banco detrás, me escondi, porque sabia
que você viria me procurar aqui, e é aqui que eu quero estar. – Afirmou ele
satisfeito enquanto se sentava no sofá.
-
Mas não é desse jeito! O senhor não sabe o que quer, então vamos decidir o que
fazer! – Retrucou a filha irritada.
-
Ninguém irá decidir o que eu vou fazer da minha vida! – Disse Miguel convicto e
rabugento.
-
Se acalmem! – Interveio Rita dentre pai e filha. – Diga Sr. Miguel, por que o
senhor quer voltar para cá, se criou uma baita confusão para sair?
-
É muito simples minha filha. O mundo está louco! – Ele disse ao arregalar os
olhos. – Aqui eu não preciso ver
disputas por heranças, filhos e netos brigando por dinheiro, carros, tudo mais que o dinheiro
compra. Aqui eu tenho amigos, e não me sinto como se fosse um peso na vida de alguém.
As pessoas não valorizam mais nenhuma companhia, só valem se tiver cargos ou sexo, e eu já não posso oferecer um ou outro.
As pessoas não valorizam mais nenhuma companhia, só valem se tiver cargos ou sexo, e eu já não posso oferecer um ou outro.
-
Mas o senhor não disse que queria saber o sentido da vida? – Perguntou a
enfermeira realmente curiosa com a resposta do velhinho.
-
Minha querida. – Ele sorriu. – Isso depende de cada um, depende daquilo que você
quer e como quer, e para mim não faz sentido estar aonde eu não me sinto bem.
-
Mas quem garante que daqui a alguns meses o senhor não mudara de ideia e
aprontará outra daquelas comigo?
-
Não se preocupe, eu não quero fugir daqui, prefiro fugir do mundo! O sentido da
vida pode ser apenas viver, a partir da consciência que você tem, não precisa
eu estar aqui ou lá, o importante é que eu esteja em mim, e saiba aproveitar o
melhor para o meu corpo, mente e espirito. E eu quero estar aqui.
Rita
se comoveu com as palavras do idoso, e se convenceu de que ele realmente sabia
o que queria, talvez conviver com a família depois de tantos anos o fizera ver
as coisas de um modo diferente, e isto era um bom motivo para o seu retorno,
assim aceitaram o velho Miguel de volta. Mas mesmo assim todos se sentiram
inseguros com o quase centenário por lá, ele representava um perigo para todos,
já que visivelmente não estava muito bom das ideias. Rita pediu para reforçar
os cuidados com ele, e sentiu pena ao imaginar como ele se sentiria mal se
soubesse o que a presença dele representava para o asilo, um perigo.
Naquela
noite, o velho Miguel dormiu como se realmente fosse um anjo, ao encostar a
cabeça no travesseiro sentiu o seu corpo leve, mais leve do que em qualquer
outra ocasião. Ele imaginou talvez fosse a leveza de sua consciência ao assumir
o que queria de sua própria vida, e exigir isso, assim como o fato de ter
esclarecido as coisas e se entendido com a enfermeira e os amigos, como era bom
sentir algo assim, pensou Miguel antes de cair no sono. Seu corpo adormeceu, assim
como a sua mente em repouso tranquilo. E
foi assim a ultima vez que se ouviu falar do velho Miguel, o seu sono abençoado
foi direto para a eternidade, e tão logo ele não estava entre os mortais.
Sempre que eu conto esta história muitos dizem
que apenas os privilegiados morrem durante o sono, e que isso é algo extraordinário,
mas o velho Miguel diria que abençoado é seguir a sua vontade, e ao acertar
usufruir do sorriso, ao errar conseguir acertar as coisas antes de ir embora, segundo
ele, esta seria a melhor benção que poderíamos receber.
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