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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A Fuga do Mundo

Da série - Mais um conto que eu conto

Foi com seu jeito simpático e alegre que Miguel, um senhor de idade cheio de historias ganhou o coração e a confiança de todos a sua volta. Sempre com palavras sábias, bons conselhos e um sorriso nos lábios, o velho Miguel, como gostava de se referir a si mesmo, era a sensação de onde vivia. Apesar de estar perto de completar um século de vida, Sr. Miguel esbanjava disposição e vigor, não dispensava o perfume, nem as roupas bem cuidadas, e não passava em lugar algum sem mexer com alguém, queria ser notado, e sempre era.

 O velho Miguel há alguns anos vivia em uma casa de repouso, mas parecia que nem tinha consciência disso, ou talvez nunca quisesse ter, e se comportava como se estivesse em sua própria casa. Ele vivia na ala leste, que era a divisão em que ficavam os mais “dispersos” da cabeça, ou com problemas mentais, ou de assimilação, ou como você achar melhor classificar.  Eu confesso que me impressionei ao ver aquele simpático velhinho na ala dos “observados”, mas tive que considerar que talvez o fato de sua idade avançada fosse um motivo para estes tantos cuidados.

O lugar onde Sr. Miguel estava hospedado era numero 1 no segmento, a mensalidade do lugar era caríssima, e só pessoas com muito dinheiro poderiam pagar. O Sr. Miguel não tinha do que reclamar quanto as suas roupas, sapatos, ou qualquer objeto para a sua higiene pessoal ou qualquer outra coisa. Tinha televisão, jogos de palavras, que inclusive era fã, pois dizia o ajudar a manter a mente alerta, além disso, seus discos preferidos sempre podiam ser ouvidos do seu quarto. Também fazia tarefas esportivas e quando não estava chovendo podia ir sempre ao imenso e belo jardim.

Mas as coisas mudam, o velho Miguel sempre dizia isso, e aconteceu com ele. Um belo dia, aliás, isso não é verdade, o dia estava bem chuvoso, Miguel ficou a observar a chuva por um longo tempo, e sem nenhum tipo de explicação plausível, algo mudou. Estava perto dele completar noventa e nove anos  quando a equipe de cuidadores da Ala leste notou uma mudança no comportamento do velho Miguel, sempre tão alegre e brincalhão, o paciente do quarto 22 já não era mais o mesmo, ficara sem apetite, não estava tão incomodado com a aparência, nem mesmo o seu simpático elogio com o cabelo das enfermeiras ele estava fazendo. Estranhando o comportamento, a enfermeira responsável por seu setor se preocupou, e resolveu que deveria conversar com ele, talvez fosse algo ligado a sua hospedagem, e um hospede como o Sr. Miguel insatisfeito não era nada bom para a imagem do Asilo.

Assim Rita foi até o quarto 22, com a sua doçura de sempre, a moça perguntou sobre as acomodações, a comida, e o tratamento à ele por parte dos cuidadores. O velho Miguel por sua vez, foi enfático. Disse que estava tudo bem, e que não existia nenhum problema com as meninas ou os rapazes que o ajudavam, e que a comida continuava muito boa, as pessoas atenciosas tanto de limpeza, ou de qualquer outro setor, e que até o guarda Matos, o rapaz que cuidava da entrada e saída de pessoas, até mesmo ele, continuava insolente, ou seja, estava tudo igual.

- Mas o senhor não parece bem Sr. Miguel. Eu estou preocupada. - Disse Rita, que realmente nutria um cuidado especial com o bom velhinho.

- Estou normal minha querida. – Ele disse com pouco entusiasmo. – Não tem por que preocupar-se com este velho aqui, deve voltar a sua atenção para as suas coisas. Tem pessoas aqui que precisa de mais atenção e cuidados do que eu.

- Todos precisam Sr. Miguel, por isso estão aqui. – Disse a mulher de forma gentil.

- Não minha querida. Estamos aqui por que somos abandonados. – Disse o Sr. Miguel sem magoa, e com uma franqueza inacreditável.

- Não diga isso, Sr. Miguel. – A mulher sorriu como quem esconde uma afirmação. – O Sr. Nunca pensou assim, sempre viveu bem aqui, fez amigos... É de se estranhar este comportamento. Aconteceu alguma coisa?

- E o que precisa acontecer pra você mudar? As coisas mudam mesmo minha querida, estamos vivos, e é isso o que acontece com a opinião e a vontade das pessoas, mudam. Eu não morri, estou aqui neste mundo ainda, logo completo cem anos, e tenho uma visita mensal de apenas uma filha.

- A sua filha não o visitou este mês Sr. Miguel? – Perguntou Rita, como se algum motivo existisse em algum lugar daquela conversa.

- Mas eu criei quatro filhos! – Disse o velho Miguel sem se exaltar, ou responder a pergunta de Rita. – Eles estão fortes e robustos, eu tenho uma filha de setenta anos! Mas onde estão os outros? O que devemos esperar dos nossos filhos, por que eles são obrigados a nos amar e se dedicar a nós?  Não tenho pena de mim por isso, eu sei que sou meio esclerosado, e estou sob um monte de pelancas, tive tanto trabalho pra conseguir dinheiro, e agora estou aqui! – Ele suspirou, os seus olhos não tinham brilho, e era indecifrável o tom de suas palavras.

- Eu não quero o senhor assim, isso não esta certo! – Disse Rita com sinceridade.

- Eu quero sair daqui minha querida. Quero ir para o mundo e rever as coisas que dão sentido a vida. Será que ainda existem? – Ele se perguntou e esbugalhou os olhos para a enfermeira.

- Claro que sim. – Ela respondeu com uma certeza, que até hoje eu não encontrei. E que também não convenceu o velho Miguel, fato que ficou muito claro para a enfermeira.

Preocupada com o ilustre paciente, Rita se organizou em fazer algo para agradar o quase centenário, e melhor cliente da casa de repouso. Chamou a filha mais participativa, e lhe contou o que acontecera, e até ousou pedir para os outros filhos o visitarem. Claro que a resposta não podia ser diferente, os dois filhos disseram que trabalhavam muito para manter o patrimônio da família, e não tinham como irem a um lugar tão longe, e que antes do centenário iriam com certeza. A outra filha disse logo que não poderia ir, tinha viagem marcada pra Europa, impossível de adiar para qualquer visita rotineira, e que a outra irmã já o visitava por todos.

 Rita ficou chocada com todos os relatos, e a partir daquele momento passou a admirar o velho Miguel por ter mantido por tanto tempo um bom humor admirável diante de uma realidade tão “estranha”. Ao menos, foi assim que Rita se sentiu.

Mesmo diante de todas as preocupações da enfermeira, Miguel tinha outras ideias. Assim que recebera a ultima visita da filha, soube que era tataravô. Ficou encantado, e assustado ao saber que a bisneta tivera um filho ainda tão jovem. Mas ainda assim dizia que a natureza da vida era a reprodução, e que não existia dom maior do que dar vida a outro ser. Talvez seja isso, ele disse para si mesmo, talvez esteja aí o sentido de que estou falando.

A partir daquele dia, Sr. Miguel colocou na cabeça que não queria mais ficar ali dentro. Depois daquela tarde, todos os dias o velho pedia para ligar para a filha, que depois da decima ligação decidiu não mais atendê-lo.  Mas mesmo assim Miguel não desistiu, pediu pra falar com o diretor da clinica, e se lamentou para as faxineiras. Na tentativa de uma fuga, quase convenceu a cozinheira e a ajudante dela a facilitar a sua saída pelos fundos da cozinha, mas para a tranquilidade de todos, elas tiveram medo de que ele não chagasse a lugar nenhum, já que a clínica ficava longe do centro, ou de outra cidade com transporte.

Aquela situação se tornou preocupante para Rita e os outros funcionários, a partir daqueles casos de escândalo envolvendo o Miguel, ficou fácil entender por que aquele velhinho simpático sempre ficara na ala leste. E mesmo diante daquelas tentativas frustradas e mudanças de humor, ninguém entendia por que aquele homem dócil se tornara alguém obcecado em fugir de um lugar que sempre adorou estar.  

Como era de se esperar o antes “bom velhinho” e agora “mala sem alça” Miguel não parava quieto, as suas tentativas se tornavam a cada dia mais arriscadas, e embora a família tivesse sido avisada, de nada adiantou, e nem mesmo na casa de repouso apareceram. Mas em uma de suas peripécias, o velho Miguel aprendeu o que significava “o corpo não acompanhar a mente”.

 Numa manhã em que o velho tentou andar mais afobado, o que todos temiam aconteceu, ele caiu, um tombo leve, mas que pode custar caro para um quase centenário, e custaram sim alguns ossos. Como o danado do velho continuava agitado, e ainda com a infeliz ideia de sair da casa de repouso, Rita pediu que o amarrassem na cama. E como era de se esperar, isso o deixou ainda mais irritado.

Mesmo com a melhora do osso da perna, Miguel continuava teimoso, e nada tirava aquela ideia da cabeça dele. Numa tarde, o Sr. Miguel dormia em sua cama, e ainda amarrado acordou com a presença de um homem em seu quarto, abriu bem os olhos e viu que uma enfermeira o acompanhava. Logo perguntou quem era o tal sujeito, ela respondeu que era um homem que reformaria os moveis do asilo. Miguel ficou reparando o homem tirar algumas medidas da poltrona e do sofá do seu quarto, assim que viu a enfermeira sair do quarto, chamou o tal homem pra perto dele.

 Ao chamar o homem para perto, o velho fez a sua aparência carismática de outros tempos. Disse que estava amarrado à meses, e que não se alimentava ou tomava nenhum remédio para dor, reclamou das roupas, da sujeira, e também disse que tinha setenta e oito anos, mas que devido aos maus tratos, parecia ter mais de cem! E assim se lamentou aos montes para o inocente senhor e prestador de serviços gerais de tapeçaria. Aquilo mexeu demais com o leigo trabalhador, ao olhar a situação o tal homem ficou horrorizado, olhou o pobre velhinho amarrado, parecia sujo, e com certeza aparentava pra lá de cem anos!

Assim, o homem sem conhecer nada da historia de Miguel, tomou a atitude menos aconselhável naquele momento. Primeiro ele pensou em desamarrar e ajudar o pobre senhor a fugir, mas logo considerou que isso seria um crime! E os criminosos eram os donos da clinica e não ele. Foi assim que o tal homem foi até a televisão, vigilância sanitária, e todo e qualquer órgão que pudesse levar algum fiscal a tirar o simpático velhinho daquele lugar horrível que amarrava as pessoas e as deixava sem nenhum alimento, vivendo apenas à base de soro.

Em pouco tempo a televisão estava lá, e foi o maior fuzuê, muita gente, polícia, e até as duas filhas do velho Miguel foram saber o que estava acontecendo. Claro que era tudo mentira dele não é mesmo! Ele sabia que estava preso para não tentar descer da cama e se machucar ainda mais, mas isso não importava, o que ele queria era sair de lá, e conseguiu.

Pois bem, mesmo depois da vigilância e outros órgãos certificarem que estava tudo de acordo, o velho falou tão mal do lugar para as filhas, coisas que fez parecer que viver em um presidio em superlotação parecia mais agradável do que o lugar. As filhas sabiam que aquilo era um exagero, mas para evitar mais confusões trataram de tirar o velho de lá.

Passaram-se cerca de três meses, Rita estava na recepção principal quando ouviu insistentes toques da campainha, logo se certificou que era a filha do Sr Miguel na recepção, aquilo lhe causou estranheza, e desde um processo movido pela família, até a morte do velho Miguel lhe passaram pela cabeça, mas para sorte ou azar, não era nada disso. A filha dele entrou desesperada pela recepção da clinica, perguntando por seu pai, disse que o velho havia fugido há no mínimo 12 horas. Rita se intrigou ainda mais! E logo questionou, perguntando por que afinal o seu pai iria para a clinica, se a poucos meses fez um alvoroço gigantesco para sair de lá.

A filha do Sr Miguel logo se explicou para a enfermeira, dizendo que algumas semanas depois que saiu da clinica o pai surtou, e disse que não queria ficar naquele “mundo de loucos”, foi assim que ele descreveu, e que o sonho da sua vida seria viver até a morte neste asilo. Rita se assustou, ou o Sr Miguel era um idoso bipolar, ou completamente louco!  Alguns minutos após esta conversa, Rita enxergou o velho Miguel entrar pela porta:

- Sr. Miguel, o que o senhor faz aqui!?

- Pai, como o senhor veio parar aqui!? – Perguntou a filha de sr. Miguel assustada.

- Ué, eu vim no seu carro. Eu estava lá no banco detrás, me escondi, porque sabia que você viria me procurar aqui, e é aqui que eu quero estar. – Afirmou ele satisfeito enquanto se sentava no sofá.

- Mas não é desse jeito! O senhor não sabe o que quer, então vamos decidir o que fazer! – Retrucou a filha irritada.

- Ninguém irá decidir o que eu vou fazer da minha vida! – Disse Miguel convicto e rabugento.

- Se acalmem! – Interveio Rita dentre pai e filha. – Diga Sr. Miguel, por que o senhor quer voltar para cá, se criou uma baita confusão para sair?

- É muito simples minha filha. O mundo está louco! – Ele disse ao arregalar os olhos.  – Aqui eu não preciso ver disputas por heranças, filhos e netos brigando  por dinheiro, carros, tudo mais que o dinheiro compra. Aqui eu tenho amigos, e não me sinto como se fosse um peso na vida de alguém. 

As pessoas não valorizam mais nenhuma companhia, só valem se tiver cargos ou sexo, e eu já não posso oferecer um ou outro.

- Mas o senhor não disse que queria saber o sentido da vida? – Perguntou a enfermeira realmente curiosa com a resposta do velhinho.

- Minha querida. – Ele sorriu. – Isso depende de cada um, depende daquilo que você quer e como quer, e para mim não faz sentido estar aonde eu não me sinto bem.

- Mas quem garante que daqui a alguns meses o senhor não mudara de ideia e aprontará outra daquelas comigo?

- Não se preocupe, eu não quero fugir daqui, prefiro fugir do mundo! O sentido da vida pode ser apenas viver, a partir da consciência que você tem, não precisa eu estar aqui ou lá, o importante é que eu esteja em mim, e saiba aproveitar o melhor para o meu corpo, mente e espirito. E eu quero estar aqui.

Rita se comoveu com as palavras do idoso, e se convenceu de que ele realmente sabia o que queria, talvez conviver com a família depois de tantos anos o fizera ver as coisas de um modo diferente, e isto era um bom motivo para o seu retorno, assim aceitaram o velho Miguel de volta. Mas mesmo assim todos se sentiram inseguros com o quase centenário por lá, ele representava um perigo para todos, já que visivelmente não estava muito bom das ideias. Rita pediu para reforçar os cuidados com ele, e sentiu pena ao imaginar como ele se sentiria mal se soubesse o que a presença dele representava para o asilo, um perigo.

Naquela noite, o velho Miguel dormiu como se realmente fosse um anjo, ao encostar a cabeça no travesseiro sentiu o seu corpo leve, mais leve do que em qualquer outra ocasião. Ele imaginou talvez fosse a leveza de sua consciência ao assumir o que queria de sua própria vida, e exigir isso, assim como o fato de ter esclarecido as coisas e se entendido com a enfermeira e os amigos, como era bom sentir algo assim, pensou Miguel antes de cair no sono. Seu corpo adormeceu, assim como a sua mente em repouso tranquilo.  E foi assim a ultima vez que se ouviu falar do velho Miguel, o seu sono abençoado foi direto para a eternidade, e tão logo ele não estava entre os mortais.

 Sempre que eu conto esta história muitos dizem que apenas os privilegiados morrem durante o sono, e que isso é algo extraordinário, mas o velho Miguel diria que abençoado é seguir a sua vontade, e ao acertar usufruir do sorriso, ao errar conseguir acertar as coisas antes de ir embora, segundo ele, esta seria a melhor benção que poderíamos receber.





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